Sobre o Suicídio

Compartilhe

por Dr. Ruy B. Mendes Filho, Médico Psiquiatra e Mestre em Psicologia, Professor de Psicopatologia, Supervisor Clínico do Hospital Psiquiátrico Itupeva e da Sociedade Rorschach de São Paulo

No costume, aliás simpático, de voltar a atenção a problemas relevantes que envolvem a psicologia, a psiquiatria e todas as disciplinas da área da saúde mental, o mês de setembro, “Setembro Amarelo”, é dedicado à difícil questão do suicídio, inclusive por Órgãos Oficiais da Saúde (Brasil/Ministério da Saúde, 2017).

Quanto a essa ocorrência trágica, o obstáculo principal reside na complexidade do entrelaçamento de determinantes que, como se sabe, interferem de modo sombrio sobre o ato suicida. Não somente através da história, mas da comparação entre as sociedades e as culturas, é difícil encontrar a ligação entre os fatores decisivos do suicídio. A própria morte se apresenta com multivocidade nesse ato definitivo.

Em princípio, pensa-se nas doenças mentais. Contudo, é bem de ver que há casos nos quais não se detectam antecedentes psicopatológicos que pudessem levar a supor o risco preeminente de suicídio. Bem conhecida foi a influência espantosa sobre a incidência de suicídio em jovens, após a leitura do “Werther”, de Goethe. Vale recordar também Shakespeare, com “Romeu e Julieta”. Eis um exemplo memorável do suicídio movido pela paixão. O enlevo da tragédia, que culmina com o suicídio sucessivo de ambos, é bem verdade, evoca muito mais a paixão muito jovem como metáfora da fugacidade do amor que sucumbe aos obstáculos da existência.

Como sempre, em Shakespeare encontra-se a literatura moderna, que deixa de lado o destino irremediável das tragédias gregas e situa, para usar um título do bardo, uma tragicomédia de erros. Longe de acontecer apenas na literatura, é possível mencionar um caso concreto que o autor destas linhas teve a infelicidade de presenciar. Um rapaz, ao romper o namoro com a jovem por quem estava apaixonado, deixa uma gravação para a mãe, lamentando não ter motivo para viver mais e, a seguir, escuta-se o estampido de uma arma.

Da mesma forma, à terrível recessão de 1929, que acometeu o mundo, especialmente nos Estados Unidos, seguiu-se uma onda de suicídios desesperados.

No século XIX, Durkheim realizou a investigação sociológica que lhe trouxe a notoriedade de primeiro sociólogo a pesquisar empiricamente o suicídio. O grande autor relacionou como determinante principal aquilo que denominou “anomia”, ou seja, a ausência de valores socioculturais que norteiam a existência humana.

Não se espera que qualquer pessoa mergulhada nessa voragem de recusar a vida a si própria não apresente abatimento do humor, mas seria simplista atribuir exclusivamente à depressão a causa do suicídio. E isso porque a depressão não é “uma” ocorrência, mas obedece a dinamismos também inter-relacionados.

É, dessa maneira, forçoso reconhecer que é impossível supor a “depressão” como o evento exclusivo a arrastar ao suicídio.

Ainda no terreno das doenças mentais, constata-se que outras perturbações têm elevado risco de suicídio, como as psicoses e os desvios da personalidade, como traços ou psicopatias. Além disso, vale -e muito- considerar o esgotamento emocional como determinante decisivo.

Se a psiquiatria encontra incidência e prevalência de suicídio em famílias, ainda assim é possível supor distintos fatores indiretos, além da depressão, como determinadas características da personalidade (instabilidade episódica do humor, impulsividade, intolerância a frustrações, entre outras) e circunstâncias familiares.

Com tais considerações, o ingresso na psicologia é inevitável. Nos comentários que se seguirão, a problemática psicopatológica será destrinçada, dentro do possível.

Kastenbaum & Aisenberg dedicam ao suicídio todo um capítulo de sua obra psicológica voltada ao tema da morte (Kastenbaum&Aisenberg, 1983).

Como referem:

“(…) Em poucas palavras, por que alguém comete suicídio?” (Ibid.: 215).

Assinalam:

  1. Porque é psicótico (…)
  2. Porque age impulsivamente (…)
  3. Em consequência do desespero (…)
  4. Porque crê que está morrendo e não tem futuro neste mundo.
  5. Porque acredita que o futuro não será melhor, mas até pior.
  6. Porque sente que seu ganho simbólico através da morte importa mais que tudo o que a vida lhe possa oferecer (Ibid.: 216).

Há ainda outras razões, não citadas pelos autores, que é possível acrescentar:

  1. Retaliação para com os familiares ou amantes, que implica vingança;
  2. Intensa aversão paranoide pelos seres humanos ou por uma sociedade determinada;
  3. Apelo de apoio a outros;
  4. Tentativa de dominação dos demais, através da comunicação reiterada das intenções suicidas;
  5. Migração, com choque cultural;
  6. Sofrimento prolongado, provocado por doenças incuráveis.

No entanto, como nem todos os que apresentam tais problemas tentam ou efetivam o suicídio, a questão permanece em aberto.

Apesar de tudo, ressaltam os autores que há pelo menos duas razões para investigar as raízes do suicídio:

  1. O que descobrimos pode nos ajudar a encontrar meios de evitar esse tipo de morte.
  2. Os fatores básicos no suicídio podem encobrir outras formas, mais sutis, de comportamento destrutivo.

É claro que os dados fornecidos pelos autores citados exigem atualização e revalidação: a faixa etária (mencionam que os índices de suicídio e o avanço em idade crescem paralelamente. A faixa etária ainda é fator relevante, para o suicídio. Embora encontrem raramente suicídio na infância, assinalam que os índices sobem gradualmente na adolescência e mais agudamente no início da maturidade), o sexo e os gêneros, como atualmente são considerados em linguagem leiga, o desemprego, a demissão, a falência, a solidão, a miséria e a ocorrência de doenças crônicas ou incuráveis.

Duas outras ocorrências são sobejamente conhecidas. A taxa maior de suicídio na Dinamarca e na Suécia supera os índices de outros países nórdicos. Atribuiu-se relação com o clima, o tédio e as características socioculturais. A disciplina familiar, que enfatiza a culpabilidade, na Dinamarca, difere dos padrões suecos. Contudo, também na Suécia, o índice de suicídio é elevado. Na Noruega, as taxas são menores. O exame de todos esses fatores escapa da concisão necessária deste artigo. Outro fato merecedor de atenção é a elevada ocorrência de suicídio entre os escolares japoneses. Neste caso, parece estar em jogo a rigorosa cultura da disciplina e dos valores tradicionais no Japão.

Os autores supramencionados discutem o suicídio infantil no Ocidente, atribuindo peso maior ao contato emocional insuficiente com os pais e à pressão social acentuada, relativamente indefinida e necessária à realização pessoal (Ibid.: 222).

De fato, toda conclusão a respeito do suicídio enfrenta obstáculo considerável pela insuficiência de dados biográficos de pormenores da história pessoal.

Em certas etnias, como a dos indígenas Guarani e Kaiowá, do Oeste brasileiro, o índice de suicídios está acima da taxa média do país, ainda que até mesmo esta revele a tendência a crescer assustadoramente. No caso dessas etnias, há inclusive a ocorrência alarmante do suicídio coletivo. Nessa realidade lastimável, há também o entrelaçamento de vários fatores: a perda dos valores ancestrais, os obstáculos de aculturação e integração à coletividade em seus padrões ocidentais, o contato com as bebidas alcoólicas sem o controle tradicional das etnias originárias sobre os hábitos sociais da população brasileira, o desemprego e o preconceito. Ressalte-se que também na população carente não indígena, a anomia assume relevância cada vez maior.

Fatores como a religiosidade oferecem maior dificuldade de avaliação a não ser em populações restritas, como no caso dos puritanos, nos EUA, em razão de ser impossível precisar a consistência das convicções e práticas religiosas. Nas últimas décadas, pesquisas valorizam a espiritualidade, porém com viés similar.

Ao que parece, jovens adolescentes masculinos suicidam-se em número maior do que as jovens adolescentes, enquanto estas apresentam número mais elevado de queixas com ideias e tentativas suicidas. Tais dados merecem cautela, em razão da informação ainda insuficiente dos casos, em geral camuflada até mesmo pelas próprias famílias. E também quanto a variáveis como o estado civil, os dados são inconclusivos, pois envolvem a questão da qualidade de vida.

Finalmente, o problema mais óbvio que, não obstante, ainda é insatisfatório.

Doenças mentais, como psicoses e desvios da personalidade (personalidades psicopáticas), são condições com índices de suicídio mais elevados que o da população sem transtornos mentais (ainda que seja necessário recordar a eventualidade do suicídio “lúcido”, com estudos insuficientes até o momento).

Com exceção dos dados sobre suicídio em consequência de transtornos mentais, que seriam compreensíveis, a partir dos quadros clínicos e da psicopatologia, que envolvem critérios empíricos e validação, as hipóteses teóricas sobre a ocorrência são ainda insuficientes, ou partem de generalizações exclusivamente especulativas.

Durkheim forneceu dados sociológicos, com a inclusão de alguns fatores psicológicos. Sua categorização do suicídio é geral: a) suicídio egoísta, por integração insuficiente da vida familiar ou social; b) suicídio compulsório por razões altruístas, quase sempre relacionadas ao sacrifício baseado em crenças religiosas, convicções patrióticas ou humanistas; c) suicídio por anomia, que resulta da ausência de valores normativos e éticos da existência humana; d) suicídio fatalista, por regras excessivamente rígidas e limitação da liberdade pessoal.

A teoria psicanalítica, com fundamento em generalizações a partir de casos analisados e pressupostos teóricos, como as interpretações sobre o luto e a melancolia e o instinto de morte, não são, infelizmente, verificáveis sob critério empírico extenso. Isso não quer dizer menosprezar a importância da dinâmica mental e, em especial, da autodestrutividade inconsciente. Muito menos supor que a psicoterapia não seja um recurso valioso. Mas, como em toda a extensa produção de concepções psicanalíticas por incontável número de autores teóricos, ortodoxos ou dissidentes, a validade se restringe aos casos submetidos à análise, ainda que o valor da psicoterapia seja incontestável.

Como já se mencionou, antes, obviamente não seria razoável supor que a ideia ou o impulso suicida ocorram em pessoas eutímicas, mas também cabe criticar o pressuposto de que todo suicida padece de “depressão”. Tal generalização é abusiva, pelo fato de que há diversas qualidades de depressão em imensa variedade de temperamentos e personalidades.

Boletim da OPAS/OMS, de 17/06/2021, relata em “suicide worldwide in 2019”, que a taxa mundial de mortes por suicídio alcançou 1:100 óbitos: 700.000. Número mais elevado do que óbitos por HIV, malária, câncer de mama, guerras e homicídios. (OPAS/OMS,2021)

No Brasil, suicídio foi a quarta causa de morte de jovens entre 15-29 anos.

As taxas variam entre países, regiões e entre homens e mulheres.

Mais homens morrem devido ao suicídio do que mulheres (12,6 por cada 100 mil homens em comparação com 5,4 por cada 100 mil mulheres). As taxas de suicídio entre homens são geralmente mais altas em países de alta renda (16,5 por 100 mil). Para mulheres, as taxas de suicídio mais altas são encontradas em países de baixa-média renda (7,1 por 100 mil).

As taxas de suicídio da OMS por regiões na África (11,2 por 100 mil), na Europa (10,5 por 100 mil) e no Sudeste Asiático (10,2 por 100 mil) eram maiores do que a média global (9 por 100 mil) em 2019. A mais baixa taxa de suicídio está na região do Mediterrâneo Oriental (6,4 por 100 mil).

Mundialmente, a taxa de suicídio está diminuindo; nas Américas, aumentando.

As taxas de suicídio caíram nos 20 anos entre 2000 e 2019, com a taxa global diminuindo 36%, diminuições variando de 17% na região do Mediterrâneo Oriental a 47% na região europeia e 49% no Pacífico Ocidental. Mas na Região das Américas, as taxas aumentaram 17% no mesmo período.

Embora alguns países tenham colocado a prevenção do suicídio em suas agendas, muitos ainda não estão comprometidos. Atualmente, há apenas 38 países que têm uma estratégia nacional de prevenção do suicídio. É urgente a maior aceleração na redução de suicídios, para cumprir a meta proposta da redução de um terço na taxa global de suicídio até 2030.

Em suma, a importância de trazer à tona os fatores envolvidos de modo significativo em suicídios é mais do que suficiente para incentivar pesquisas. Além disso, a atenção preventiva, perante problemas dessa ordem, demanda medidas prementes e eficazes.

É mais do que tempo de desfazer o tabu do suicídio, não apenas como informação à população geral, mas também quanto à orientação do diálogo necessário, intrafamiliar, o que depende de diversas práticas disciplinares e de intervenções grupais e comunitárias.

Não se trata de “falar” mais sobre o suicídio, nem de “medicar” suicidas potenciais, de acordo com os cânones vigentes da psiquiatria e as notícias incertas.

O que está em jogo é a atuação conjunta, em equipe, além das referências e contrarreferências devidamente qualificadas, no sentido de contribuir para minorar um problema que aflige o mundo, no presente, e se estende de modo preocupante a um futuro incerto.

Referências

  • Brasil/Ministério da Saúde- Setembro Amarelo: Ministério da Saúde lança Agenda Estratégica de Prevenção do Suicídio, 2017: 34 slides PowerPoint.
  • Brasil/Ministério da Saúde- DATASUS/MS <http://datasus.saude.gov.br/> .
  • Kastenbaum, R & Aisenberg, R- Psicologia da morte. Tradução de Adelaide Petters Lessa. Ed. concisa. São Paulo, Editora Pioneira/Editora da Universidade de São Paulo, 1983.
  • Organização Panamericana da Saúde/Organização Mundial da Saúde- Boletim OPAS/OMS: “suicide worldwide in 2019”, 2021: 17/06/2021.

Dr. Ruy B. Mendes Filho, Médico Psiquiatra e Mestre em Psicologia, Professor de Psicopatologia, Supervisor Clínico do Hospital Psiquiátrico Itupeva e da Sociedade Rorschach de São Paulo

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe!

Explore

Por que Orfeu
Blog

Por que Orfeu

Por que Orfeu, sendo tão celebrado e relembrado pelos artistas,  de todas as épocas, não costuma ser escolhido e estudado em profundidade pelos psicanalistas?  

pai-e-filho-discutindo-briga-de-familia
Blog

A agressão dirigida a quem cuida

Por que um filho descarrega nos pais sua frustração pelo mundo? Há casos recorrentes de ofensas, agressões físicas e até assassinatos de pais cometidos pelos

× Fale Conosco