Ruy B. Mendes Filho*
O autor retoma o conceito de prevenção, na área da saúde mental, a partir de Caplan (1985), enquanto ações integradas de equipes multidisciplinares em todos os níveis de atenção. Ressalta a importância de estendê-las aos núcleos familiares e não exclusivamente no sentido de omitir a assistência necessária em crises que exigem internação hospitalar breve e cuidados que as pessoas com transtornos mentais irreversíveis necessitam, em função do seu grau de autonomia. Conclui que tais ações relevantes não se restringem apenas às pessoas com recursos financeiros e seus familiares, mas podem alcançar a comunidade carente e inclusive sem-teto, como consequência da exclusão social.
A partir da psicologia das atitudes (Fraisse & Meili, 1967), apresenta um modelo dinâmico que inclui tanto os papéis qualificados das equipes quanto as modalidades de interação familial em situações que envolvem as dificuldades de adaptação (objetiva), ajustamento (subjetivo) e integração (objetiva e subjetiva) no âmbito dos ambientes de existência comunal.
Prevenção primária, secundária e terciária
Os autores citados neste texto podem ser considerados antigos, mas não ultrapassados. Recorreu-se aos seus livros, por tratarem de questões ainda atuais e relevantes.
A prevenção primária
A prevenção primária envolve ações sociais que visam modificar os cenários social e político, legislativo, regulamentador das instituições e procedimentos próprios da saúde, critérios da educação (e da informação através da mídia) e reabilitação psicossocial, de modo a propiciar condições de melhoria da existência concreta das pessoas com transtorno mental, em escala comunitária. (Caplan, 1985: 72-104)
Um exemplo atual das ações nesse nível é o risco de drogadição. Como condição específica, envolve no entanto medidas em dimensões distintas das instituições sociais, família, escola, segurança, transporte, polícia e escritório regional de assistência social, com suporte psicológico familial e referências médicas.
É patente a insuficiência desses recursos na sociedade atual, em nosso país, por razões que não cabem no propósito deste texto. Sabe-se que a drogadição se deve a vários fatores, de ordem fisiológica, psíquica e social. (Mendes Filho, 2020: 113-116)
Obviamente, descarta-se a internação hospitalar, salvo em casos de comprometimento cerebral (sofrimento orgânico) e mental (síndromes relacionadas ao uso e à abstinência). Famílias disfuncionais (com indiferença ou desarmonia entre os cônjuges, abusos e descaso para com os filhos, desemprego, pai ou mãe usuários de substância psicoativas, ocorrência de enfermidades debilitantes no núcleo familial) demandam intervenções, não só através de ações dos setores da saúde como judiciárias.
Não é incomum que as últimas acarretem internações prolongadas e ineficazes de todo para a recuperação de drogaditos. Outra situação importante é a dos longevos que se tornam dependentes da família e, em razão da carência de recursos, terminam rejeitados ou socialmente excluídos. Já com esses exemplos de risco se evidencia a importância das ações primárias. Mas é indispensável que estas se articulem com os outros níveis de prevenção.
A prevenção em nível secundário
Na vigência de um transtorno mental que, pela gravidade, exija internação breve ou cuidados especiais, surge a necessidade de institutos apropriados, de acordo com padrões de higiene, qualificação profissional e estímulo à atividade, além de flexibilidade na condução dos casos. (Caplan, 105-127)
Tais clínicas e enfermarias psiquiátricas são insuficientes, como se sabe, em decorrência do extremismo com que foram combatidas por movimentos sociais. Como resultado, em vez de humanizadas e adequadas em dimensões físicas, as clínicas foram em muitos casos fechadas.
Ora, em que pese a importância dos Centros de Atenção Psicossocial, é preciso recordar que esses setores institucionais sempre recorreram a referências para internação, em função de riscos evidentes à pessoa com transtorno mental e aos demais.
Deixar as pessoas entregues aos riscos eminentes do espaço público das grandes cidades representou omissão e gerou a multidão de cidadãos sem-teto, que hoje desafia a gestão da área de saúde mental e, inclusive, dos governos.
Os cuidados dispensados durante as internações breves não se resumem à conduta medicamentosa e da enfermagem. Daí a relevância da comunicação e do diálogo entre todos os profissionais da equipe. A internação, um procedimento penoso a quem o sofre, apesar de indispensável, pode ser amenizada através de um acolhimento paciente, gentil e, ao mesmo tempo, atento aos riscos previsíveis.
A diversidade dos contatos com a equipe, as atividades supervisionadas, por exemplo, pela terapia ocupacional, e a sempre benéfica atuação de técnicos desportivos, são fatores essenciais à recuperação. A comunicação dos agentes de serviço social com os responsáveis pela internação é, da mesmo forma, um procedimento indispensável.
As medidas de segurança não devem ser confundidas com atitudes repressoras e similares às ações policiais. A segurança justifica-se, nas clínicas, para evitar danos físicos e morais tanto à pessoa com transtorno mental quanto aos demais internados.
Os medicamentos não podem ser entendidos como “camisa de força química” e sim administrados com critérios seguros, com base psicofarmacológica e protocolar.
A comunicação com os familiares é realizada durante a internação e visa detectar problemas que possam interferir na recuperação do doente e na própria dinâmica familial.
Enfim, a prevenção em nível secundário, na vigência de um transtorno mental, não se limita ao isolamento em clínica, além de abranger setores de referência e contrarreferência para a detecção e o tratamento de outras doenças clínicas que extrapolam o tratamento psiquiátrico.
A prevenção em nível terciário
É patente, desse modo, que os níveis de atenção se articulam e não podem ser considerados isoladamente. O nível terciário das ações de saúde se define pelo propósito de evitar o agravamento de transtornos mentais contínuos, crônicos ou mesmo progressivos.
É preciso recordar que há perturbações mentais que se devem ao desenvolvimento insuficiente. Neste caso, incluem-se a deficiência intelectual, a psicopatia (transtorno específico da personalidade) e traços disfuncionais da personalidade, que provocam conflitos subjetivos e atritos interpessoais. Não se trata aqui de propor asilos gigantescos, com capacidade de manter milhares de pacientes, tal como se concebeu no passado.
Áreas menores, como comunidades com população menor, compatível com os cuidados individuais e grupais, podem e devem preencher a urgente necessidade de mudança das instituições de tratamento, nas quais o papel do médico psiquiatra- apesar de indispensável- supõe equipes devidamente qualificadas, capazes de propiciar recursos de reabilitação e de minorar as condições de risco, tanto de rejeição quanto de exclusão social.
Tal empreendimento não apenas é imprescindível, como viável, na dependência da consciência política e social das sociedades e da comunidade. Não se trata simplesmente de “libertar os doentes mentais” e sim de lhes propiciar condições de vida mais digna.
Em todos esses níveis de atenção e de medidas preventivas, o estigma das doenças mentais não pode ser esquecido, mas perspectivas utópicas e ideológicas também são ineficazes, como se comprovou nas últimas décadas, em nosso país.
Por outro lado, todos os níveis implicam também a mudança de “atitude”, tanto no convívio quanto no tratamento dos transtornos mentais. Esse tópico será discutido a seguir.
Psicologia das atitudes
“Atitude”, no caso, não se limita aos procedimentos adequados e sim à dinâmica mental subjacente, das pessoas que se situam no âmbito da normalidade relativa (sempre imprecisa, mas relevante, pois é fato consumado que, em maioria, as pessoas com transtornos mentais podem ser atendidas em regime aberto, nos centros de atenção psicossocial e ambulatorial.
Portanto, “atitude” diz respeito a tendências, conscientes ou inconscientes, que se mantêm e configuram distorções do juízo de realidade e de valor.
Exemplo disso é o “temor” persistente que leva à evitação de contato com as pessoas doentes, por considera-las “perigosas”. Ora, sabe-se que, exceto em casos de psicopatia e de psicoses determinadas, em maioria, os doentes mentais oferecem menos perigo do que pessoas que se situam na faixa da normalidade.
Técnicas diversas de sensibilização e de resolução de problemas dessa ordem foram desenvolvidas pela psicologia. (Fraisse, in Fraisse & Meili, 1967: 37-57)
Há atitudes que se sedimentam em noções e conceitos equivocados sobre os doentes mentais. (Oléron, in Fraisse & Meili, 1967: 58-72)
Neste caso, se trata de preconceitos ou ideias errôneas, adquiridas talvez precocemente, ou por falta de informação. São, assim, generalizações abusivas ou categorizações imprecisas sobre a questão dos transtornos mentais.
Em razão de envolverem a subjetividade peculiar, ou a influência de uma apreciação cultural, tais atitudes não são de resolução fácil. Não obstante, podem ser minoradas, com supervisão e eventual intervenção psicológica ou até mesmo médica.
Há também atitudes mantidas por desvios que correspondem a atributos do caráter. Nesse caso, além de orientação apropriada, deve-se pensar em equívoco da direção vocacional, no curso de vida.
Certamente, atitudes que se ligam à dinâmica afetivo-emocional são obstáculos difíceis de transpor. As equipes devem merecer esclarecimentos e adquirir, na prática, a habilidade de detectar esse viés. No entanto, essa habilidade não pode servir como derivativo de rivalidade, competitividade ou indisposição pessoal no âmbito da dinâmica das equipes.
Não é incomum que diferentes posições políticas e ideológicas perturbem a interação das equipes. Ressalte-se que não se trata de alcançar igualdade de ideias ou de posicionamento ideológico, mas de operar no sentido de integrar as equipes, de modo a possibilitar uma atuação eficaz e menos causadora de desgastes emocionais.
A perspectiva de examinar as atitudes exigiria mais espaço do que o cabível no propósito deste texto. A exposição desses problemas parece suficiente para a reflexão posterior e o estímulo a prática mais saudáveis, na área da saúde mental.
*Especialista em Psiquiatria, Mestre em Psicologia Clínica, Supervisor Clínico do Hospital Psiquiátrico Itupeva, Itupeva, SP.
Referências
Caplan, Gerald- Principios de Psiquiatria Preventiva. Barcelona/México/Buenos Aires, Ediciones Paidos, 1985.
Fraisse, Paul; Meili, Richard et al.- Psicología de las actitudes. Buenos Aires, Ed. Proteo, 1967.
Mendes Filho, Ruy B.- Psicopatologia: ensaio propedêutico. São Paulo, Ed. Sparta, 2020.