Patologia social na terra do Pato Donald — The Florida Project (2017)

Compartilhe

por Dr. Ricardo de Moura Biz, Médico Psiquiatra e Psicanalista, Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Colaborador do Centro de Estudos de Saúde Mental Itupeva.

 

O filme “Projeto Flórida” de 2017 conta a história de uma mãe (Halley) e uma filha (Moonee) que vivem num motel nos arredores da ensolarada Orlando, Estado da Flórida, sob um pano de fundo de um excesso de cartazes com promoções, outdoors, fachadas de lojas, um motel todo rosa e roxo, chamado Magic Castle Inn, onde moram as personagens; logo ao lado deste motel, há o Orange World, uma loja redonda, na forma de uma laranja descomunal; também vizinho há o Gift Shop, com uma cabeçorra de um mago no telhado da loja. Eis um império capitalista cafona, a sociedade do espetáculo, o mundo encantado da Disney, com a função de obliterar a luta de classes que ocorre numa dimensão menos visível.

O filme se passa todo na perspectiva da menina de 6 anos que, grande parte do tempo, fica aprontando com os amiguinhos ou sob os cuidados questionáveis da mãe. Questionáveis porque Halley, nitidamente à margem da sociedade, sobrevivendo de revendas de objetos, pequenos golpes e prostituição, negligenciaria e exporia sua filha. Seus ganhos financeiros são basicamente para comida (fast foods) e o aluguel do motel, numa existência precária contrastante com seus vizinhos em condomínios luxuosos que jogam golfe, fazem passeios e esbanjam poder de consumo.

Ela consegue eventualmente comida de graça com uma conhecida que mora no mesmo motel e trabalha numa lanchonete. Noutra cena, Halley entra com a filha num hotel e dá um número qualquer de um quarto e faz  uma refeição grátis. Em vários momentos do filme, mãe e filha fazem, para algum helicóptero (High Society) sobrevoando que constantemente sonoriza o filme, um fuckyou, gesto simbólico, pois manifestam para o outro justamente aquilo que elas sofrem diante de uma sociedade excludente.

Numa interpretação do filme apressada, o telespectador passivo pode sentir raiva dessa mãe e responsabilizá-la por sua posição à margem da sociedade. Vê-la como uma preguiçosa que opta por não trabalhar e expõe a filha a traumas. Se fosse uma funcionária padrão, como é o caso de sua vizinha que trabalha numa lanchonete, despertaria compadecimento no telespectador e não raiva. Se Halley acatasse essa domesticação neoliberal, sentando e dando a pata, as entranhas de um sistema desigual não seriam expostas.

É justamente nesse ponto que a personagem Halley diferencia-se, pois sua rebeldia pode ser vista como alguém que resiste a massificação, ainda que tal resistência se manifeste de maneira sintomática, sintomas esses que devem ser vistos dentro de um enquadre socioeconômico e não simplesmente psicologizante, como se tais sintomas fossem inadequações e baixa performance (enhancement) derivados de conflitivas estritamente intrapsíquicas.

Com segurança, poderíamos classificar Halley como borderline, dada a instabilidade de suas relações e no próprio humor, suas explosões de raiva e violência, sua impulsividade sem consideração pelas consequências, seu comportamento briguento, seu flerte com a criminalidade e com as drogas, além de algumas manifestações paranóicas episódicas e passageiras. Seguindo Dunker (1), podemos interpretar o fenômeno borderline como uma patologia moderna que tem bases de estruturação também em nosso contexto social do neoliberalismo, já que mostra uma oposição a um modus operandi coletivo e opressor, além de evidenciar a contrariedade do sujeito e alertar sobre seu sofrimento e sua adequação. Se o indivíduo depressivo contemporâneo representa o fracasso, a inutilidade e a anedonia (incapacidade de sentir prazer), o indivíduo em (hipo) mania é o contraponto dialético, numa caricatura produtiva, utilitária, potente, gozante e fálica. E se o protesto do depressivo, se assim podemos dizer, é silencioso, cordato, fazendo greve de fome e praticando a não violência (pelo menos, não de forma evidente contra o Outro), o protesto do borderline é ruidoso, exuberante, violento, expressando-se num vandalismo inquietante e incômodo.

Sob a máscara do utilitarismo, da liberdade de escolha (compra) e da tranquilidade assegurada pelo Estado que defende a propriedade privada, Halley é como um resto que sobra da produção, um lixo que será coletado pelo Estado e encaminhado a uma aterro mais adequado. Esse resíduo é visto como empecilho para o desenvolvimento dos outros: “morreu na contramão, atrapalhando o tráfego”, diria Chico Buarque.

Além disso, Halley não tem porque se comiserar, já que ela é menosprezada pelo status quo vigente: não tem propriedade privada, luta por receber um auxílio do governo e não consegue emprego.

Bobby, o gerente do motel, nitidamente é investido de uma autoridade que sustenta a ordem local. Halley, revoltada, chega a dizer-lhe: “você não é meu pai”, evidenciando o desejo de emancipação de uma lei patriarcal. Na sequência dessa cena, enfurecida, Halley retira seu absorvente do genital e gruda-o no vidro da recepção do motel, numa linguagem não verbal mostrando seu desejo próprio. Outros elementos que constituem essa emblemática personagem é o fato de ser uma mulher desocupada, numa sociedade que valoriza elementos fálicos, potentes e produtivos.

Halley se esforça para livrar o seu corpo do controle do Estado, fugindo dos monitoramentos dos serviços sociais. No entanto, algum vizinho denuncia ao Estado que Halley recebia homens para se prostituir no mesmo quarto onde estava com a filha. Na verdade, a menina ficava no banheiro enquanto a mãe fazia programas no quarto. Então a violência do Estado se manifesta separando filha e mãe, embasado num discurso de cuidar da filha.

Moonee foge, desembestada, das garras do Estado, junto com uma amiguinha, na direção de um Castelo, ícone fálico do consumo em Orlando, como se a princesinha buscasse uma salvação. Mal sabia a inocente menina que ela pedia ajuda justamente para seu algoz…

 

AUTOR

Ricardo Biz

Psiquiatra \ Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da FEPAL e da International Psychoanalytical Association (IPA) \ Livros publicados — O amor In verso — Sinto mas Ad versos — Psiquiatria, psicanálise e pensamento simbólico —Internações psiquiátricas (Org) — O que é a morte, papai?
E-mail: contato@psiquiatriajundiai.com.br

Explore

Por que Orfeu
Blog

Por que Orfeu

Por que Orfeu, sendo tão celebrado e relembrado pelos artistas,  de todas as épocas, não costuma ser escolhido e estudado em profundidade pelos psicanalistas?  

pai-e-filho-discutindo-briga-de-familia
Blog

A agressão dirigida a quem cuida

Por que um filho descarrega nos pais sua frustração pelo mundo? Há casos recorrentes de ofensas, agressões físicas e até assassinatos de pais cometidos pelos

× Fale Conosco