O suicídio no filme “A Sun: sóis, fumaças e trevas”

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por Dr. Ricardo de Moura Biz, Médico Psiquiatra e Psicanalista, Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Colaborador do Centro de Estudos de Saúde Mental Itupeva.

 

A Sun, filme taiwanês, narra a história de um pai, uma mãe e seus dois filhos adolescentes. O pai, homem bronco e severo, trabalha como instrutor de uma autoescola. A mãe, mais sensível e compreensiva, é cabeleireira numa boate. O filho caçula (A-ho) se envolve com a delinquência e o mais velho faz uma espécie de cursinho preparatório para ingressar na faculdade de medicina.

O início do filme nos capta com uma cena muito impactante de A-ho e um comparsa, que decepa a mão de um rapaz. O caçula é então preso, sentenciado pela justiça e pelo próprio pai que pede ao juiz a aplicação de pena severa, na esperança que o Estado consiga fazer o que ele, pai, não conseguiu realizar, ou seja, educar devidamente o filho.

A-Hao, o filho mais velho é introspectivo, inteligente e solitário. Nitidamente é o depositário dos sonhos de uma vida melhor dos pais, extenuados e entregues numa existência proletariada.

A-Ho, o caçula, é pragmático, ruidoso, voltado para o ato — impulsivo, violento e impensado. Não contém seus instintos, inclusive chega a engravidar uma adolescente com quem se relaciona.

A-Hao, o irmão mais velho, pelo contrário, é discreto, reflexivo, de atitudes inibidas. As cenas em que aparece são carregadas de simbolismo — seja quando confronta seu professor de filosofia, ou quando passeia num zoológico com a sua paquera ou quando recebe sistematicamente do pai um caderno novo, em branco, vazio, por escrever…

O primogênito tem certa fascinação pelo sol, que talvez nos dê alguma dica, até por emprestar o nome ao filme. A-Hao dizia que o sol é a coisa mais democrática e justa que existe, já que brilha indiscriminadamente em todos os lugares do planeta. No entanto, esse mesmo personagem vive à sombra da projeção narcísica dos pais, sombra essa que impede que ele floresça.

Seu pai (seu sol negro), em vários momentos do filme, ancora-se no slogan: “aproveite o dia, escolha o seu destino”. Mas, súbita e inesperadamente, o enredo do filme nos surpreende, deixando-nos perplexos e sem explicação: A-Hao escolhe o seu destino, suicida-se, jogando-se da janela do apertado apartamento onde morava com sua família.

O sujeito suicida ou sujeito ao suicídio

O comportamento agressivo, inconsequente, errático e explosivo do irmão mais novo (A-Ho) — que sequestra a atenção do telespectador e evoca a ideia de (auto)destrutividade — é certamente uma cortina de fumaça que camufla o primogênito (A-hao) suicida do filme.

Em muitas situações nas quais uma pessoa se expõe a riscos de acidentes/violência não conseguimos vislumbrar a intencionalidade das suas ações. O suicídio, por vezes se apresenta como um homicídio precipitado pela vítima (como tantas vezes o psicanalista Roosevelt Cassorla destacou), quando uma pessoa provoca uma agressão de outra contra si, “sabendo” que sofrerá as consequências.

Sofrer uma auto ou hetero agressão provocada remete-nos automaticamente à concepção de masoquismo, que, de forma alguma, podemos associá-la estritamente à passividade.

Há muitos masoquistas que se esforçam muito ativamente, para se colocarem em posição de sofredor ou, como ironizou Lacan, “trabalham feito um burro” (1964/1988, p.189).

“São três grandes polaridades que governam a vida psíquica”, comentou Freud em “Instintos e seus destinos” (2010/1915):

  1. atividade e passividade;
  2. eu-mundo exterior;
  3. prazer-desprazer.

Não por acaso, Freud se utilizou do termo “governam”, pois estaria o sujeito entremeado por forças pulsionais obscuras, desconhecidas e inconscientes que o pressionam e influenciam seu destino, dando a impressão que esse mesmo sujeito não é o senhor de seu destino.

Recordemos que a etimologia da palavra sujeito: deriva do Latim subjectus, particípio passado de subicere, “colocar sob, abaixo de”, formado por sub-, “sob”, mais a forma combinante de jacere, “jazer, lançar”.

Temos ainda os seguintes sentidos para o termo sujeito, segundo o dicionário Michaelis:

  1. Que se sujeitou a algo ou a alguém.
  2. Dependente, subordinado.
  3. Domado, subjugado, submetido.
  4. Que está sob determinado dever, obrigação, etc. (ex.: sujeito às regras).
  5. Obediente; dócil, cativo.
  6. Que apresenta determinada vulnerabilidade ou possibilidade (ex.: sujeito às intempéries).

Nesse ínterim, o sujeito etimológico, histórico e psicanalítico é mais submetido que protagonista, embora um racionalismo reativo seja ciclicamente retomado desde o Séc. XVIII com um sujeito cartesiano lógico-racional com livre arbítrio.

O movimento existencialista, cujo ápice foi na década de 1950, veio contestar essa concepção freudiana propondo que cada indivíduo tem liberdades de escolhas, o que serve para a construção das essências de cada um. A liberdade de escolha é vista pelos existencialistas como sendo um fenômeno gerador, pois ninguém além do próprio indivíduo é responsável pelo seu fracasso ou sucesso.

Ora, quem é sujeito, vítima ou meio externo gerador de conflitos no filme  “A Sun”? “O sol é democrático” (na fala de A-hao), ilumina e queima todos: sofremos influências externas sem as quais permaneceríamos no ostracismo, fora da cultura. Sofremos ainda influências internas ou pulsionais, que se dirigem a objetos internos e externos. Nesta perspectiva do sujeito, o último (ou único) ato de autonomia do primogênito A-Hao foi seu suicídio?

Referências:

Lacan, J. (1988). Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar editor (seminário proferido em 1964)

Freud, S. (2010). Instintos e seus destinos, in Sigmund Freud obras completas Volume 12. Companhia das Letras (Trabalho publicado originalmente em 1915)

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