Por que um filho descarrega nos pais sua frustração pelo mundo? Há casos recorrentes de ofensas, agressões físicas e até assassinatos de pais cometidos pelos próprios filhos. Por meio de elementos da cultura tentarei traçar os caminhos percorridos pelo ódio que transborda dos filhos e atinge os pais.
Na cultura, têm-se inúmeros exemplos do ódio que surge quando o líder começa a capengar. Ódio, no forte sentido termo: vontade de agredir, matar, trucidar e mutilar: há uma verdadeira sede de sangue quando esse sentimento escala.
Na época da Revolução Francesa, quanto mais o rei Luís XVI mostrava-se faltante, mais aumentava o ódio contra ele, que, como se sabe, foi guilhotinado.
No altar de holocaustos, canaliza-se contra a vítima sacrificial uma violência que tem por objetivo aplacar os ânimos do(s) deus(es) e não sofrer castigos, ou seja, atingir a paz. Um grande paradoxo: por meio da violência, objetiva-se a paz. É que a violência contra a vítima sacrificial, segundo Girard (2005/ 1972), seria uma violência “benigna”, que aplacaria um suceder de violências vingativas.
A vítima sacrificial deveria concentrar algumas caracteŕistica para poder funcionar como depositária da violência, a saber: a) ter sido considerada importante para a comunidade (totem, rei); b) conter características com as quais a comunidade se identifique; c) conter características com as quais a mesma comunidade não se identifica, ou seja, características estrangeiras.
No ciclo de poder, é comum que reis, líderes ou presidentes sofram perseguições ou sejam mortos, após uma fase de domínio, tal como as vítimas sacrificiais.
O próprio Édipo, após um período em que demonstrou muita potência e despertou muita admiração, inclusive alcançando privilégios[1] que só são concedidos aos reis, sofreu, num momento posterior, intensa repugnância. Girard (2005/ 1972) demonstra como Édipo também é uma vítima sacrificial e critica duramente Freud por não ter notado este ponto crucial.
De qualquer maneira, o ponto central, é o afunilamento do ódio da comunidade na vítima sacrificial, que exerce a função de um para-raio.
O holocausto pode ser mais ou menos ritualizado, mais ou menos violento. Pode ser mais asséptico, realizado num altar, com um golpe certeiro que provoca a morte sem sofrimento; ou pode se extender pelas ruas, com uma morte cruenta, por linchamento, muito sofrimento ou até despedaçamento[2].
O ódio da comunidade recai sobre o líder, na medida em que este titubeia. No Êxodo, há quatro momentos em que Moisés, na saída do Egito para a Terra Prometida, recebe críticas, desconfianças e desconsideração.
A primeira vez foi quando o povo Hebreu percebeu que estava sendo alcançado pelos soldados do faraó; na iminência de serem pegos, responsabilizaram Moisés, que, por fim, fez com que o povo escapasse por entre o Mar Vermelho. A segunda vez que desconfiaram foi quando os Hebreus sentiram fome, voltaram-se contra Moisés e Arão:
Os israelitas disseram-lhes [a Moisés e a Arão]: “Antes fôssemos mortos pelas mãos de Yahweh [Senhor] na terra do Egito, quando estávamos sentados junto à panela de carne e comíamos pão com fartura! Certamente nos trouxestes a este deserto para fazer toda essa multidão morrer de fome.” (Êxodo 16,3)
Depois quando sentiram sede:
Ali o povo teve sede de água e o povo murmurou contra Moisés, dizendo: “Por que nos fizeste subir do Egito, para nos matar de sede a nós, a nossos filhos, e a nossos animais?” (Êxodo 17,3)
Por último, quando Moisés estava demorando a chegar, pois estava falando com Deus, no alto da montanha, o povo novamente se sentiu desamparado e praguejou contra Moisés.
Portanto, no texto bíblico, perseguição, fome, sede e desamparo despertaram no povo raiva contra Moisés. O povo, neste caso, funciona como um ser regredido, uma criança por assim dizer, que tudo espera de seu tutor e não se responsabiliza por si
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Melanie Klein foi incisiva neste ponto: “Esse sentimento de que a mãe [pode ser o pai também] é onipotente e de que compete a ela evitar toda dor e males provindos de fontes internas e externas é também encontrado na análise de adultos.”(Klein, 1991, p 217).
Encontramos, portanto, tanto na cultura quanto na clínica individual, as raízes do ódio voltado para aquele que cuida, seja ele a mãe ou o pai. No momento em que a idealização do cuidador se rompe, a frustração é manifestada na forma de ódio contra o próprio cuidador.
Ricardo Biz, psiquiatra e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Referências
Bíblia de Jerusalém (1998). São Paulo: Paulus.
Girard, R. (2005). La violencia y lo sagrado. Anagrama. (Trabalho originalmente publicado em 1972)
Klein, M. (1991). Inveja e gratidão e outros trabalhos. Imago
[1] Para alguns reis era permitido transgredir certos tabus da comunidade. Édipo “desfrutou”, numa perpectiva gozoza, do incesto.
[2] A morte por diasparagmós era comum na Grécia antiga. Dioniso, Orfeu, por exemplo, sofreram esse fim.