Por que Orfeu

Por que Orfeu

Compartilhe

Por que Orfeu, sendo tão celebrado e relembrado pelos artistas,  de todas as épocas, não costuma ser escolhido e estudado em profundidade pelos psicanalistas?

 

hospital itupeva

 

O não-lugar ocupado por Orfeu, ou sua característica de mediação – entre deuses e  humanos, entre homem e mulher, entre corpo e alma, entre vivo e morto , entre intuição e dedução etc – imporiam dificuldades aos psicanalistas de se apropriarem desta posição evanescente?

A dimensão que concerne ao mito de Orfeu enfatiza sua voz e seu canto como forças de enfrentamento dos perigos, da perda (de Eurídice) e, consequentemente, de seu  luto; diante desta falta fundante,  do vazio potencial,  Orfeu cria a mais bela sublimação, cria o orfismo. (Delorme, 2006).

A sensibilidade e talento de Orfeu metamorfoseia o bruto e o angustiante para apreciação sensorial e lida com sua falta por meio da ritualização; por isso frequentemente se menciona Orfeu como o civilizador. É aqui que a semelhança de Orfeu com o analista deve ser salientada: o analista, este sublimador,  que enfrenta o inconsciente fugidio ( como era fugidia Eurídice para Orfeu) e que facilita a exérese de elementos mundanos e ordinários trazidos pelos pacientes.

Na trajetória de Orfeu, seu canto sofreu recalque originário, após as duas perdas de Eurídice, mas ocorreu o retorno do recalcado na liturgia do orfismo. A perda de Orfeu era rememorada de forma performática pelo orfismo, religião arcaica com elementos importados do oriente que se praticava provavelmente há mil anos antes de Cristo e se estendeu por alguns séculos em nossa era.

A religião, de forma geral, é um arcabouço ritualístico desenvolvido para elaborar um luto. Após uma perda ou uma morte, elementos concretos, tais como relíquias, são postos em cena para produzir cerimoniais, o que fica muito evidente no caso do cristianismo:

“e, depois de dar graças, partiu-o [o pão] e [Jesus] disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim’”. (Coríntios, 11,24). O pão, sendo o próprio Cristo, pode ser incorporado e revivido. São atos do luto, tanto para lembrar quanto para suturar uma falta.

Assim também o orfismo se inscreve numa tentativa de depuração do mito pelo logos. Ou seja, Orfeu situa-se na interface entre, de um lado, o sinestésico e o estético ( bem captados pelos artistas) e, de outro lado, a lógica da dedução performática do orfismo.

A psicanálise está em consonância com o caráter intermediário que se estende do canto do Orfeu-músico ao verbo do Orfeu-sacerdote, pois a psicanálise não é só um saber-fazer intuitivo; ela se fundamentada num corpo teórico, ou seja, sua tékhne se apoia num logos.

Orfeu – que desceu aos infernos, que conhece os mistérios e tem ciência da falta – se torna profeta, oráculo, mágico[1], mago, feiticeiro, curandeiro e, porque não, analista.

Nesse sentido, Orfeu vai além da representação teatralizada do mito, pois possui uma dimensão religiosa, ritualística, curativa, catártica e ascética. Há uma produção tanto simbólica ou abstrata, quanto ritual e concreta. O psicanalista também produz sentidos com as interpretações, e, ademais, não há como negar a ritualística que envolve o tratamento: o comprimento, o deitar no divã, a despedida, o consultório, o pagamento etc. são atos do culto ao inconsciente; nesse culto, o analista é sacerdote que, iniciado nos seus mistérios, deve ao analisante a abstinência de seu desejo, para que possa o conduzir à cura.

 

itupeva

 

E se o orfismo se investia de um caráter político, pois concorria e até contestava as religiões oficiais da época, a psicanálise também tem sua matriz subversiva na medida em que não se propõe a pacificar conflitos nem a defender uma ordem preestabelecida, mas se propõe a expor dilemas, escancarando-os, até as últimas consequências – até o inferno!

O analista, por meio da interface sensório-intelectual, ouve o canto (desafinado, triste e lamurioso)  dos pacientes e os conduz à catarse, mas uma catarse pelo avesso, na qual o sentidos que se encaixavam e conferiam uma unidade totalizante e tranquilizadora dão lugar ao tensionamento do estabelecido.

Orfeu – múltiplo! Orfeu, que não se deixa reduzir…

 

Ricardo Biz, psiquiatra e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

 

Referências

 

Bíblia de Jerusalém (1998). São Paulo: Paulus.

Delorme, S. (2006). Orphée, cet analyste. Insistance, 1(2), 153-169. https://doi.org/10.3917/insi.002.0153

Jourdan, F. (2008).Orphée, sorcier ou mage ? Revue de l’histoire des religions 225(1).

http://journals.openedition.org/rhr/5773 ; DOI : https://doi.org/10.4000/rhr.5773

[1] “O canto da cítara, fixado pelo tempo, torna-se pharmakon e epôidê [poção mágica, remédio]  – cada um dos dois termos referindo-se às virtudes médicas e encantatórias de suas fórmulas” [tradução nossa] (ver Jourdan, 2008)

 

[1] “O canto da cítara, fixado pelo tempo, torna-se pharmakon e epôidê [poção mágica, remédio]  – cada um dos dois termos referindo-se às virtudes médicas e encantatórias de suas fórmulas” [tradução nossa] (ver Jourdan, 2008)

Explore

Por que Orfeu
Blog

Por que Orfeu

Por que Orfeu, sendo tão celebrado e relembrado pelos artistas,  de todas as épocas, não costuma ser escolhido e estudado em profundidade pelos psicanalistas?  

pai-e-filho-discutindo-briga-de-familia
Blog

A agressão dirigida a quem cuida

Por que um filho descarrega nos pais sua frustração pelo mundo? Há casos recorrentes de ofensas, agressões físicas e até assassinatos de pais cometidos pelos

× Fale Conosco