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por Dr. Ricardo de Moura Biz, Médico Psiquiatra e Psicanalista, Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Colaborador do Centro de Estudos de Saúde Mental Itupeva.
O filme O milagre (disponível na plataforma Netflix ) tem vários elementos psicológicos interessantes que podem ser discutidos. O filme conta a estória de uma menina de 11 anos que faz um jejum prolongado e começa a ganhar ares de santa. Sua família, de religiosidade fervorosa, estimula o comportamento dessa pré-adolescente. Uma enfermeira e uma freira são destacadas por um comitê para observarem se a menina realmente jejua ou se o caso é uma fraude.
Na verdade, o jejum prolongado da garota tinha uma motivação psicológica interessante que será desvendado depois da metade do filme: a jovem revela que se casara, há cerca de dois anos com o irmão mais velho, num ritual lúdico, pois seu irmão dizia ter um amor duplo por ela: amor de esposa e de irmã.
Assim a menina manteve relações sexuais com esse irmão desde seus dos 9 anos até a morte desse irmão por motivo de doença. A interpretação dada a essa morte pela família tinha cunho religioso: foi um castigo. E a garota, então, desenvolve um comportamento anorético e obsessivamente devoto.
Ao recusar a comida, recusa, simbolicamente, seus desejos. Daí ela tem a sensação que está controlando e não sendo controlada por seus desejos. Na prática, ocorre uma mortificação dos seus desejos, que teria a função de santificar a jovem ao mesmo tempo em que a aproximava, num flerte com a morte, do irmão já falecido.
Vale comentar que é comum nos comportamentos suicidas a fantasia de reencontro com um ente querido já morto. Muitos suicidas acreditam mesmo que, após a morte, encontrarão as pessoas perdidas.
Outro ponto interessante a ser destacado é o comportamento conivente da mãe da menina. Esta mãe estimula veladamente a anorexia da filha. Não é regra, mas é relativamente comum encontrarmos mães omissas de filhas abusadas, ou mães que fazem “vistas grossas” para o abuso. Em alguns casos ocorre, inclusive, a responsabilização da vítima e não do agressor que cometeu a violência.
Mas a protagonista do filme não é a jejuadora. É a enfermeira contratada para fazer a vigília da menina. Sua função era apenas observá-la sem interferir nas condutas da menina. Ela era uma mulher forte, racional e que carregava a dor da morte de sua filhinha com poucas semanas de vida, além do abandono do pai dessa bebê.
Tal como Antígona, que na peça de Sófocles de mesmo nome, apresenta-nos um dilema ético atemporal: enterrar o irmão, cumprindo com os ritos humanos e desrespeitar o rei (lei dos homens), a enfermeira veicula o dilema central no filme: salvar a menina – que corria risco de morte se continuasse naquele ambiente que estimulava o jejum e adotá-la como filha – ou obedecer a lei dos homens, mantendo-se firme no posto para o qual foi contratada.
Uma ética humana deve se sobrepor aos ditames dos homens?
A enfermeira, assombrada pelos fantasmas do passado, estaria tentando reparar a perda de sua filhinha colocando a menina jejuadora em seu lugar?
O filme deixa a dúvida se a protagonista enfermeira é uma defensora da ética humana ou é uma perturbada por traumas pessoais.
O fim do filme é reconciliador. A enfermeira, com status de heroína, desafiou a lei dos homens e sequestrou a menina, que mudou de nome e passou a ser a filha dessa enfermeira e de um jornalista com quem ela se relacionava. Formou-se, enfim, uma família nuclear – papai, mamãe, filhinha – nos moldes do século XIX, período retratado no filme. Na cena final, a menina volta a comer, numa ampla mesa vitoriana, monitorada pelo olhar atento dos pais. Este belo drama psicológico, que no happie end retrata uma família feliz e funcional, merecia um final menos clichê.
AUTOR
Ricardo Biz
Psiquiatra Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da FEPAL e da International Psychoanalytical Association (IPA) Livros publicados — O amor In verso — Sinto mas Ad versos — Psiquiatria, psicanálise e pensamento simbólico —Internações psiquiátricas (Org) — O que é a morte, papai?
E-mail: contato@psiquiatriajundiai.com.br