O empreendedorismo como panaceia

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por Dr. Ricardo de Moura Biz, Médico Psiquiatra e Psicanalista, Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Colaborador do Centro de Estudos de Saúde Mental Itupeva.

 

Após a Segunda Guerra mundial, vários pensadores começaram a notar que estava ocorrendo um certo empobrecimento subjetivo no ser humano.

No que pesem as diferentes formas de abordagem, sejam eles filósofos, psicanalistas ou historiadores, tais pensadores, surpreendentemente, confluíam em seus achados. Todos descreveram, guardadas as diferenças na nomenclatura e conceitualizações, no homem, após os anos de 1950, uma desidratação mental, um declínio das capacidades imaginativas e da intelectualização.

É como se estivesse em marcha uma mudança do espírito, com uma tendência à passividade, submissão e indisposição à rebeldia.

E culmina que o homem hoje não quer saber de conflitos. Na verdade, sua luta é negar que existam rivalidades e impasses, desejando um aplainamento das desigualdades.

A figura do Homo zappiens – que troca de tela trinta vezes por minuto, alheio ao seu entorno, autômato, numa obediência cega aos algoritmos do big data – representa o inquilino de nossos tempos.

É como se fosse uma marionete controlada por fios que lhe são invisíveis.

Desta forma, o que habita a carcaça do homem contemporâneo são subjetividades frágeis, inconsistentes, moldáveis, “líquidas” no dizer de Zigmunt Bauman.

O curioso é que essa mesma vacuidade psíquica tornou-se, ela em si, um espaço a ser ocupado por identidades prontas para vestir (prêt-à-porter na expressão francesa relacionadas às roupas da moda).

Ora, por que não comercializar um espaço disponível? Se uma pessoa está perdida na vida, não sabe o que quer nem quem é. E se está sofrendo, com dívidas e descontente com seu emprego… ou ainda se deseja a melhor versão de si, com mais fama, sucesso e dinheiro. Para todos esses casos, a última novidade já está acessível no mercado: o empreendedor.

A identidade do empreendedor está à venda.  E o melhor: é você quem monta seu avatar, basta ir à banca mais próxima e escolher de olhos fechados algum livro, ou fazer um curso de algum coaching milagreiro, pois todos estes vão dar a mesma receita: acredite em seu sonho; não existe sorte, existe quem está preparado; transforme desafios em oportunidades… Enfim, uma litania infinita de clichês.

A promessa de futuro próspero vem num embrulho bonito, cheio de cores reluzentes. Mas ilusão tem prazo de validade…

No consultório, muitas vezes recebemos os empreendedores que “decaíram” à condição de pacientes. Entre aspas, porque o paciente pode ao menos (e isso não é pouca coisa) ser mais sincero consigo mesmo. Decaem porque estavam flutuando, alçados numa fantasia de superempreendedor e a magia perdeu o vigor, e então a pessoa cai no divã do analista.

Mas estamos lá para isso mesmo. Ninguém busca analista porque está megafeliz. É só na dor que alguns se propõem a trocar de couro.

E então a análise pode ajudar a nos disfarçar de humanos.

 

 

 

AUTOR

Ricardo Biz

Psiquiatra Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da FEPAL e da International Psychoanalytical Association (IPA) Livros publicados — O amor In verso — Sinto mas Ad versos — Psiquiatria, psicanálise e pensamento simbólico —Internações psiquiátricas (Org) — O que é a morte, papai?
E-mail: contato@psiquiatriajundiai.com.br

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